quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Clima e ATR: uma relação complexa

 Por: Alexandrius de Moraes Barbosa
Eng. Agrônomo, com mestrado e doutorado em ecofisiologia vegetal da cana-de-açúcar e especialização em agrometeorologia e climatologia.


A cada início de safra surgem surpresas em relação à qualidade da cana-de-açúcar e, na maioria das vezes, são surpresas negativas. Os questionamentos são comuns: por que o ATR está baixo? Por que o ATR não reage ao longo da safra? De que maneira o clima influenciou a construção da qualidade da cana-de-açúcar? Responder a essas perguntas não é tarefa fácil, pois, além do clima, diversos fatores de manejo e fitossanitários também afetam o teor de sacarose no colmo. No entanto, o clima é o fator que mais pesa na qualidade da cana-de-açúcar, e compreender sua complexa relação com o ATR é essencial para entender o papel climático e elaborar estratégias de manejo mais eficientes.

A cana-de-açúcar pode ser dividida em quatro fases de crescimento: brotação, perfilhamento, crescimento vegetativo e maturação. Todas essas fases são influenciadas pelas condições climáticas; no entanto, é o clima que determina se a planta irá crescer vegetativamente (produção de folhas e entrenós) ou entrar em maturação (aumento do Brix, Pol e ATR).

De maneira geral, a combinação de temperaturas elevadas, boa disponibilidade de água no solo e altos valores de radiação solar promove o crescimento vegetativo, período responsável pela definição do TCH (toneladas de colmos por hectare). Já a combinação de temperaturas mais baixas, baixa disponibilidade de água no solo e menores valores de radiação solar favorece a maturação da cana-de-açúcar, fase caracterizada pela redução do crescimento vegetativo e pelo aumento dos parâmetros de qualidade (Brix, Pol e ATR).

Observa-se na Figura 1 a relação das condições climáticas com o crescimento da cana-de-açúcar na região Centro-Sul do Brasil. No período de outubro a março, as condições climáticas favorecem o crescimento vegetativo. Já a redução da temperatura e da precipitação no início do outono dá início ao processo de maturação, que se estende até a planta atingir a maturação plena nos meses de julho e agosto.

Figura 1. Crescimento vegetativo e fases da maturação da cana-de-açúcar na região centro-sul do Brasil (Alexandrius de Moraes Barbosa)

Dessa maneira, observa-se que o clima é um fator determinante na regulação da translocação orgânica na cana-de-açúcar, ou seja, atua como o grande regulador da relação fonte-dreno. O primeiro produto estável da fotossíntese é um carboidrato de três carbonos denominado triose-fosfato. Esse composto serve de base para a síntese dos demais açúcares da planta, em especial as hexoses (glicose e frutose) e a sacarose. E é justamente nesse ponto que o clima exerce seu papel: as condições climáticas influenciam o metabolismo fisiológico da cana-de-açúcar, regulando o destino desses carboidratos.

Fisiologicamente, o aumento no teor de sacarose nos colmos da cana-de-açúcar ocorre quando a atividade das enzimas que hidrolizam a sacarose é superada pela atividade das enzimas de síntese de sacarose (GOLDNER et al.,1991).

A regulação desse processo ocorre por meio da ação de enzimas presentes no colmo da cana-de-açúcar (Figura 2). Essas enzimas modulam o metabolismo e determinam se a planta direcionará energia para o crescimento vegetativo ou para a maturação. Entre as principais estão: a sacarose-fosfato-sintase (SPS), sacarose-fosfato-fosfatase (SPP), a sacarose sintase (SuSy), as invertases ácidas (IA), as invertases neutras (IN) e as invertases ácidas do vacúolo (IAV).


Figura 2. Papel das enzimas na relação do clima com a translocação orgânica (Alexandrius de Moraes Barbosa).


Em condições de alta temperatura do ar, boa disponibilidade de água no solo e elevada radiação solar, há maior atividade das invertases (IA, IN e IAV), enzimas responsáveis pela hidrólise da sacarose e consequente formação das hexoses (glicose e frutose). Com o aumento da produção dessas hexoses, a cana-de-açúcar passa a utilizá-las na respiração para sustentar o crescimento vegetativo, caracterizado pela biossíntese de novos entrenós e folhas, resultando em um aumento expressivo da produtividade de colmos (Figura 3).


Figura 3. Atividades das enzimas envolvidas no metabolismo de carboidratos da cana-de-açúcar. A Figura representa a fase de crescimento vegetativo, com maior atividade das enzimas em vermelho (invertases).


Já em condições de baixa temperatura do ar e de baixa disponibilidade de água no solo (déficit hídrico), observa-se maior atividade das enzimas SPS e SPP, que promove a síntese e o acúmulo de sacarose no vacúolo celular. Como consequência, há elevação dos parâmetros de qualidade da cana-de-açúcar (Brix, Pol e ATR) (Figura 4).

Figura 4. Atividades das enzimas envolvidas no metabolismo de carboidratos da cana-de-açúcar. A Figura representa a fase de maturação, com maior atividade das enzimas em vermelho (SPS e SPP).


Obs.: A sacarose sintase (SuSy) é uma enzima versátil, capaz de tanto degradar quanto sintetizar sacarose. No crescimento vegetativo, sua atividade favorece a degradação, fornecendo energia e precursores para a formação de novos tecidos. Já na maturação, pode contribuir para a síntese de sacarose, embora em menor intensidade que a SPS e a SPP.

Avançando na complexa relação entre o clima e o ATR, é importante destacar que a qualidade da cana-de-açúcar não é construída apenas no outono e inverno, mas sim desde o início da formação dos primeiros entrenós e também durante a fase de crescimento vegetativo.

Durante a primavera/verão, as condições climáticas favorecem a atividade das enzimas ligadas à produção de hexoses, impulsionando o crescimento vegetativo e a definição do TCH. No entanto, a taxa de produção de carboidratos nas folhas é tão elevada que a planta não consegue consumir todo o carbono fixado na formação de novos entrenós e folhas. Assim, o excedente de fotoassimilados é armazenado no vacúolo das células na forma de sacarose, elevando o teor de Brix e Pol nos entrenós.

As estiagens fracas e moderadas que ocorrem durante a primavera/verão podem contribuir para o acúmulo de sacarose nos entrenós, uma vez que o déficit hídrico estimula a atividade das enzimas SPS e SPP. Assim, as condições climáticas registradas nesse período exercem impacto direto sobre a qualidade da cana-de-açúcar a ser colhida nos meses seguintes. Essa dinâmica pode ser observada no gradiente de Brix e de sacarose ao longo do colmo, com valores mais elevados nos entrenós mais velhos e menores nos entrenós mais novos.

Dessa maneira, a ocorrência de estresses severos durante o crescimento vegetativo pode comprometer a construção da qualidade da cana-de-açúcar. Essa condição pôde ser observada na safra atual: embora as condições climáticas entre abril e agosto tenham sido favoráveis à maturação, os valores de ATR em várias regiões ficaram abaixo dos registrados em 2024. Durante a fase de crescimento vegetativo, dois eventos climáticos importantes foram determinantes para esse resultado.

Obs.: Não se discutirá aqui o efeito das geadas (que também impactaram nos baixos valores de ATR).

O primeiro ocorreu no início da primavera, com a ocorrência de uma intensa onda de calor nos meses de setembro e outubro, associada a um período prolongado de déficit hídrico, principalmente nas regiões central e noroeste de São Paulo (Figura 5).

Figura 5. Balanço hídrico sequencial de Piracicaba-SP de julho de 2024 a agosto de 2025.


O segundo evento foi a ocorrência de uma severa estiagem em janeiro e março de 2025, principalmente na região oeste de São Paulo (Figura 6).

Figura 6. Balanço hídrico sequencial de Presidente Prudente-SP de julho de 2024 a junho de 2025


Ambos os eventos podem comprometer a qualidade da cana-de-açúcar. Em situações de estresse severo, dois mecanismos fisiológicos podem reduzir essa qualidade. O primeiro é a hidrólise da sacarose armazenada no vacúolo, ou seja, o consumo da sacarose já acumulada nos entrenós formados. O estresse faz com que a planta invista em estratégias fisiológicas de sobrevivência, como o aumento do sistema radicular, o gasto de energia na reparação de membranas e proteínas, e a produção de enzimas antioxidantes. A energia necessária para essas respostas ao estresse é suprida tanto pelo consumo das hexoses (com consequente redução no TCH) quanto pelo consumo da sacarose armazenada (impacto negativo na qualidade).

A segunda situação está relacionada à isoporização celular. Nesses eventos extremos, além da hidrólise (consumo) da sacarose, ocorre também a desidratação das células (plasmólise). As células isoporizadas perdem grande parte da capacidade de voltar a armazenar sacarose; em outras palavras, muitos dos entrenós que estavam formados durante o estresse severo deixam de ter potencial de armazenamento, o que impactará negativamente a qualidade da cana a ser colhida.

Dessa maneira, a construção da qualidade da cana-de-açúcar se inicia desde a formação dos primeiros entrenós e não apenas na fase de maturação, evidenciando que o clima e o ATR mantêm, de fato, uma relação complexa.














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