Por: Alexandrius de Moraes Barbosa
Eng. Agrônomo, com mestrado e doutorado em ecofisiologia vegetal da cana-de-açúcar e especialização em agrometeorologia e climatologia.
A cada início de safra surgem surpresas em relação à qualidade da cana-de-açúcar e, na maioria das vezes, são surpresas negativas. Os questionamentos são comuns: por que o ATR está baixo? Por que o ATR não reage ao longo da safra? De que maneira o clima influenciou a construção da qualidade da cana-de-açúcar? Responder a essas perguntas não é tarefa fácil, pois, além do clima, diversos fatores de manejo e fitossanitários também afetam o teor de sacarose no colmo. No entanto, o clima é o fator que mais pesa na qualidade da cana-de-açúcar, e compreender sua complexa relação com o ATR é essencial para entender o papel climático e elaborar estratégias de manejo mais eficientes.
A cana-de-açúcar pode ser dividida em quatro fases de crescimento: brotação, perfilhamento, crescimento vegetativo e maturação. Todas essas fases são influenciadas pelas condições climáticas; no entanto, é o clima que determina se a planta irá crescer vegetativamente (produção de folhas e entrenós) ou entrar em maturação (aumento do Brix, Pol e ATR).
De maneira geral, a combinação de temperaturas elevadas, boa disponibilidade de água no solo e altos valores de radiação solar promove o crescimento vegetativo, período responsável pela definição do TCH (toneladas de colmos por hectare). Já a combinação de temperaturas mais baixas, baixa disponibilidade de água no solo e menores valores de radiação solar favorece a maturação da cana-de-açúcar, fase caracterizada pela redução do crescimento vegetativo e pelo aumento dos parâmetros de qualidade (Brix, Pol e ATR).
Observa-se na Figura 1 a relação das condições climáticas com o crescimento da cana-de-açúcar na região Centro-Sul do Brasil. No período de outubro a março, as condições climáticas favorecem o crescimento vegetativo. Já a redução da temperatura e da precipitação no início do outono dá início ao processo de maturação, que se estende até a planta atingir a maturação plena nos meses de julho e agosto.
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Figura 1. Crescimento vegetativo e fases da maturação da cana-de-açúcar na região centro-sul do Brasil (Alexandrius de Moraes Barbosa) |
Dessa maneira, observa-se que o clima é um fator determinante na regulação da translocação orgânica na cana-de-açúcar, ou seja, atua como o grande regulador da relação fonte-dreno. O primeiro produto estável da fotossíntese é um carboidrato de três carbonos denominado triose-fosfato. Esse composto serve de base para a síntese dos demais açúcares da planta, em especial as hexoses (glicose e frutose) e a sacarose. E é justamente nesse ponto que o clima exerce seu papel: as condições climáticas influenciam o metabolismo fisiológico da cana-de-açúcar, regulando o destino desses carboidratos.
Fisiologicamente, o aumento no teor de sacarose nos colmos da cana-de-açúcar ocorre quando a atividade das enzimas que hidrolizam a sacarose é superada pela atividade das enzimas de síntese de sacarose (GOLDNER et al.,1991).
A regulação desse processo ocorre por meio da ação de enzimas presentes no colmo da cana-de-açúcar (Figura 2). Essas enzimas modulam o metabolismo e determinam se a planta direcionará energia para o crescimento vegetativo ou para a maturação. Entre as principais estão: a sacarose-fosfato-sintase (SPS), sacarose-fosfato-fosfatase (SPP), a sacarose sintase (SuSy), as invertases ácidas (IA), as invertases neutras (IN) e as invertases ácidas do vacúolo (IAV).
Em condições de alta temperatura do ar, boa disponibilidade de água no solo e elevada radiação solar, há maior atividade das invertases (IA, IN e IAV), enzimas responsáveis pela hidrólise da sacarose e consequente formação das hexoses (glicose e frutose). Com o aumento da produção dessas hexoses, a cana-de-açúcar passa a utilizá-las na respiração para sustentar o crescimento vegetativo, caracterizado pela biossíntese de novos entrenós e folhas, resultando em um aumento expressivo da produtividade de colmos (Figura 3).
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Figura 4. Atividades das enzimas envolvidas no metabolismo de carboidratos da cana-de-açúcar. A Figura representa a fase de maturação, com maior atividade das enzimas em vermelho (SPS e SPP). |
Durante a primavera/verão, as condições climáticas favorecem a atividade das enzimas ligadas à produção de hexoses, impulsionando o crescimento vegetativo e a definição do TCH. No entanto, a taxa de produção de carboidratos nas folhas é tão elevada que a planta não consegue consumir todo o carbono fixado na formação de novos entrenós e folhas. Assim, o excedente de fotoassimilados é armazenado no vacúolo das células na forma de sacarose, elevando o teor de Brix e Pol nos entrenós.
As estiagens fracas e moderadas que ocorrem durante a primavera/verão podem contribuir para o acúmulo de sacarose nos entrenós, uma vez que o déficit hídrico estimula a atividade das enzimas SPS e SPP. Assim, as condições climáticas registradas nesse período exercem impacto direto sobre a qualidade da cana-de-açúcar a ser colhida nos meses seguintes. Essa dinâmica pode ser observada no gradiente de Brix e de sacarose ao longo do colmo, com valores mais elevados nos entrenós mais velhos e menores nos entrenós mais novos.
Dessa maneira, a ocorrência de estresses severos durante o crescimento vegetativo pode comprometer a construção da qualidade da cana-de-açúcar. Essa condição pôde ser observada na safra atual: embora as condições climáticas entre abril e agosto tenham sido favoráveis à maturação, os valores de ATR em várias regiões ficaram abaixo dos registrados em 2024. Durante a fase de crescimento vegetativo, dois eventos climáticos importantes foram determinantes para esse resultado.
Obs.: Não se discutirá aqui o efeito das geadas (que também impactaram nos baixos valores de ATR).
O primeiro ocorreu no início da primavera, com a ocorrência de uma intensa onda de calor nos meses de setembro e outubro, associada a um período prolongado de déficit hídrico, principalmente nas regiões central e noroeste de São Paulo (Figura 5).
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Figura 5. Balanço hídrico sequencial de Piracicaba-SP de julho de 2024 a agosto de 2025. |
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Figura 6. Balanço hídrico sequencial de Presidente Prudente-SP de julho de 2024 a junho de 2025 |